Na época da Fumaça a gente tinha uma manobra que apelidamos “carinhosamente” de maldita.
Na época da Fumaça a gente tinha uma manobra que apelidamos “carinhosamente” de maldita.
Aproveitando que o pessoal achou interessante a conversa do ala que apagou em voo por causa do G, vou contar essa.
A Esquadrilha da Fumaça tem um conjunto incrível de manobras e cada geração de pilotos que passa por lá acrescenta alguma coisa.
Algumas dessas manobras são bem simples, mas que encantam o público em geral.
Outras simples aos olhos, mas só quem é da aviação entende a complexidade.
A maldita era uma dessas manobras, simples, mas só quem experimentou o G negativo entende o que era estar dentro daquele avião.
Antes preciso fazer um breve parêntesis.
Sentar no cockpit de um Tucano é uma delícia, mas vc estará abrindo mão de conforto e de espaço.
Na Fumaça aprendi que cintos e suspensórios devem estar sempre bem justos pra segurar bem o corpo em qlqr situação. Com o tempo aquilo torna-se um hábito e deixa de incomodar. Ainda hoje, quando sento no cockpit do helicóptero, puxo todas as fitas dos cintos e suspensórios pra ficar bem preso ao assento.
Virou mania.
Segundo parêntesis, uma breve explicação sobre a força G.
Os efeitos dela têm duas variantes fundamentais: a intensidade e o tempo de exposição. As consequências do G positivo começam com a falta de irrigação dos olhos e consequente perda de visão e, num caso extremo, perda da consciência.
Pra permitir que o piloto possa suportar melhor o G positivo, os projetistas desses aviões modernos desenharam um assento mais deitado e são equipados com vestimenta anti-G, que é uma bolsa de ar que o piloto veste sobre o macacão de voo. Conforme o piloto experimenta a força G, essa bolsa vai inflando e pressionando as pernas e abdômen do piloto pra dificultar o fluxo sanguíneo das partes altas do corpo para as pernas.
O Tucano não tem nada disso. Pra suportar melhor o G positivo o piloto comprime os músculos abdominais pra manter mais sangue no cérebro.
E quanto ao G negativo?
Não conheço nenhum dispositivo pra diminuir o fluxo de sangue das pernas pra cabeça, mesmo pq não faz muito sentido o piloto voar invertido num combate aéreo. Acho que uma bolsa que inflasse na região do pescoço não faria bem ao piloto, então relaxa e deixa a cachola encher de sangue.
A maldita era um círculo de 360°, nivelado a baixa altura, com 60° de inclinação com uma média de 2G.
Só que em voo invertido, ou seja, de cabeça para baixo. Então esses G eram negativos.
Simples pra quem vê. Um sufoco pro piloto. Quem fazia a maldita era o #7, ou seja o isolado.
Nessa hora a gente percebia como o nariz do Tucano era enorme! Dificultava a visão do espaço que o avião iria percorrer.
Era nessa hora que a gente via que fomos concebidos pra viver de cabeça pra cima. Na maldita a gente usava músculos que nem lembrávamos que tínhamos só pra manter as mãos e os pés nos comandos.
Os suspensórios seguram o piloto pelos ombros. Os cintos têm um desenho que seguram o piloto no alto das coxas, quase nos quadris.
Interessante explicar que uma das identidades da Esquadrilha da Fumaça é justamente o voo de dorso. Isso quer dizer que o piloto novo vai voar muito pendurado nesses dispositivos. Isso quer dizer que vai encontrar marcas avermelhadas na pele onde passam os cintos e suspensórios. Com o tempo o couro acostuma à novidade e deixa dessa frescura de reclamar só pq não usa a bunda pra permanecer no assento.
Nunca cronometrei o tempo em que a gente ficava de cabeça pra baixo submetido a 2G negativos, mas aquelas dezenas de segundos pareciam intermináveis.
Acabando a maldita, a gente tinha que colocar o avião de cabeça pra cima e apontá-lo para a esquadrilha que estaria entrando na arena para mais algumas manobras. Em seguida tínhamos que puxar um punhado de G positivo pra se posicionar o mais rápido possível do outro lado dessa arena.
Alívio para os ombros e alto das coxas. A bunda volta pro assento.
Por outro lado, não me lembro de ter feito essa transição de cabeça pra baixo para cabeça pra cima, acompanhada de G positivo, sem que minha visão se apagasse por uns poucos segundos.
Não tinha força de abdômen que pudesse garantir visão o tempo todo. De olhos bem abertos eu só via a escuridão. Acho que os olhos ficavam tão irrigados de sangue durante a maldita, que assim que botava G positivo ficavam “mal acostumados” e dava o black out.
Isso tudo pertinho do chão.
Segura na mão de Deus e vai com fé.
Sempre deu certo!
Sempre achei que o apelido “maldita” caiu como uma luva pra manobra.
Abraço,
Flemming
Coletivo prá cima. Cíclico a frente.
Piloto de Helicóptero Ruy Flemming, Coronel Aviador da Reserva da Força Aérea Brasileira.
Formou-se na Academia da Força Aérea Brasileira – AFA
Piloto do 1º Esquadrão de Instrução Aérea da AFA – 1º EIA, das Aeronaves T-25 e T-27 Tucano, formando centenas de Pilotos Militares na Academia
Piloto de Helicóptero Bell UH-1H do 2º/10º Gav – Busca e Salvamento – SAR –
Piloto da Esquadrilha da Fumaça entre os anos de 1992 e 1995 como #3 Ala Esquerda e #7 Isolado
Piloto de Helicótpero Agusta 109
Ex-Diretor da ABRAPHE – Associação de Brasileira de Pilotos de Helicópteros –
Autorizou transcrever seus artigos, causos, dicas e curiosidades aeronáutica de asa fixa ou rotativa. Para acompanhar o Aviador Ruy Flemming nas redes sociais, acesse o link a seguir RUY FLEMMING NO AR