Você sabe como um piloto da Esquadrilha da Fumaça atua nos comandos do seu avião pra voar de cabeça para baixo?
Antes de prosseguir vou dar um exemplo que qualquer pessoa entende.
Imagine você dirigindo o seu carro e quisesse curvar à esquerda. Em vez de girar seu volante pra esquerda, você gira ao contrário, ou seja, pra direita. E lá vai o carro fazendo uma curva pra esquerda, enquanto você, confiante, mantém o volante pra direita, fazendo os devidos ajustes para não subir na calçada, nem invadir a pista contrária.
É o tipo de coisa que dá um nó na cabeça de qualquer um, mas é exatamente isso o que acontece quando um piloto voa invertido, ou seja, de cabeça para baixo.
Se vc estiver sozinho lá em cima, se aventurando num voo de cabeça pra baixo, sem outro avião por perto, beleza. Pode errar a vontade.
Só que o voo da Esquadrilha da Fumaça é um voo de demonstração aérea. Nesse tipo de voo as coisas costumam ser um pouco mais complexas.
Pra voar no meio de uma formação com seis aviões, todos de cabeça para baixo, ou desenhar no céu a manobra conhecida por espelhão, onde três aviões estão em voo normal e outros três em voo invertido, os pilotos têm que desenvolver habilidades pra voar de cabeça pra baixo com a mesma precisão que voam de cabeça pra cima.
Nao é fácil, mas garanto que depois que aprende, qualquer um faz.
Mas como “desenvolver essas habilidades”?
Um dia o Siqueira assistiu a um filme alemão onde dois planadores Blanik voavam na ala de cabeça para baixo.
Chamou o Willie.
– Será que dá pra fazer isso de T-25?
O Siqueira e o Willie eram instrutores de voo na Academia da Força Aérea, instituição de ensino da Força Aérea Brasileira que forma seus aviadores.
Ao final de um dia dedicado a ensinar cadetes a voar, montavam cada um num T-25 Universal e iam pra área de instrução tentar decifrar os códigos ainda secretos desse tipo de voo.
Estamos falando num ambiente de uns trinta anos atrás, quando era possível fazer coisas assim.
Começaram do zero.
Um ficava em voo normal e o outro colocava o avião de cabeça pra baixo tentando buscar um voo de ala por uns poucos segundos (15 a 20, mas alguns aviões chegavam quase a 30 segundos).
Como o motor Lycoming do T-25 não tem um pescador de óleo capaz de suprir a lubrificação em voo invertido, ao primeiro ruído que indicava que a hélice iria para o passo bandeira, eles já colocavam o avião na posição normal e a pressão de óleo nem chegava a cair muito.
Isso aconteceu em 1981, no final do ano letivo dos cadetes e logo vieram as férias.
Depois de muita adrenalina, sustos e espirradas, o Willie e o Siqueira entenderam que deveriam fazer um ajuste mental em seus instintos pra conseguir voar na ala de cabeça pra baixo.
Daí veio a grande sacada: o Siqueira inventou um simulador de voo invertido.
Extremamente simples. Durante as férias, cada um em sua casa, acomodaram-se de cabeça pra baixo na cama.
A partir daí, a capacidade imaginativa de cada um deles entrou em cena. Tinham que imaginar uma curva à esquerda sempre que comandassem o manche à direita e vice-versa.
Depois da férias, ao voltarem para a rotina dos voos o problema foi resolvido. Uma vez que o simulador de voo fez os adequados ajustes mentais, o domínio do voo de dorso na ala aconteceu.
Sejamos justos, outros instrutores de voo também fizeram um trabalho interessante pra dominar o voo de cabeça pra baixo na ala. Vilarinho, Reis, Borin, Peach, Cancherini estão entre esses nomes, mas gostei da história que o Willie e o Siqueira me contaram.
Se você é piloto deve estar se perguntando. Mas se os comandos se invertem, como ficam as forças aerodinâmicas?
Não muda nada.
A asa sempre vai descer quando o aileron subir e vice-versa.
Mas se nada, por que os comandos do piloto se invertem?
Porque o comando do piloto fala mais com o que ele está vendo que com o que acontece quando um aileron sobe ou desce.
Imagine um avião voando de cabeça para baixo. Agora imagine um manche que transpasse a fuselagem, saindo pela barriga do avião. Coloque um piloto sentado na barriga desse avião que no caso, estará com a barriga pra cima e a capota pra baixo. Ele comanda esse manche que começa na cabine de pilotagem, passa pelo avião e vai até onde o piloto está.
Se ele quiser fazer uma curva pra direita, vai ter que levar o manche pra direita. Lá embaixo, o movimento do manche transpassado será o contrário. O aileron da asa direita vai subir, a asa direita vai descer e o avião vai fazer a curva pra direita.
Depois que o piloto aprende a voar de cabeça pra baixo, passa a voar com a mesma precisão que voa de cabeça pra cima.
Simples assim. Acabou o mistério.
Depois que alguém faz, todo mundo que vier depois tbm é capaz de fazer.
A propósito, o T-25 Universal foi usado no Cometa Branco, um time que foi o precursor da Esquadrilha da Fumaça.
Anos mais tarde, o Willie e o Siqueira vieram a fazer parte da Esquadrilha da Fumaça.
O T-27 Tucano e o A-29 Super-Tucano têm motores a turbina, acrobáticos, que são capazes de voar por muito mais tempo de cabeça pra baixo sem qualquer problema.
Se a Esquadrilha da Fumaça é conhecida, mundialmente, entre os times que domínam o voo de cabeça pra baixo em grupo, a gente deve isso àqueles caras que tinham correndo nas veias uma boa dose de ousadia, capacidade inventiva e a convicção de que um obstáculo está lá pra ser superado.
Esse artigo é um agradecimento a todos aviadores que ousaram ir além. Uma homenagem ao Willie que está voando mais alto.
A propósito, a imagem que ilustra este artigo se refere a um recorde nosso que está no Guiness Book of Records.
Crédito das Fotos Capa e Texto: CECOMSAER – Centro Comunicação Social da Aeronáutica.
Muito obrigado!
Abraço
Flemming.
Coletivo prá cima. Cíclico á frente!
Piloto de Helicóptero Ruy Flemming, Coronel Aviador da Reserva da Força Aérea Brasileira.
Formou-se na Academia da Força Aérea Brasileira – AFA
Piloto do 1º Esquadrão de Instrução Aérea da AFA – 1º EIA, das Aeronaves T-25 e T-27 Tucano, formando centenas de Pilotos Militares na Academia
Piloto de Helicóptero Bell UH-1H do 2º/10º Gav – Busca e Salvamento – SAR –
Piloto da Esquadrilha da Fumaça entre os anos de 1992 e 1995 como #3 Ala Esquerda e #7 Isolado
Piloto de Helicótpero Agusta 109
Ex-Diretor da ABRAPHE – Associação de Brasileira de Pilotos de Helicópteros
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