Entramos em nuvens logo após a decolagem.
– Nivela!
– Hã?!?
– Tá comigo!
– Flemming, vc está desorientado!!!
Voo simples, passageiro do tipo CAVOK.
Pilotos costumam preferir os do tipo CAVOK. É mais fácil convencer passageiros desse tipo que dá pra voar com segurança que convencer um passageiro do tipo Qualquer Tempo (qlqr condição meteorológica) de que agora não vai dar.
Eu jamais cancelei um voo por questões meteorológicas.
Só que algumas vezes simplesmente não dá pra fazer no momento exato que atenda às expectativas do passageiro daí, ou voamos em outra hora ou, eventualmente, quem cancela é o passageiro.
Nesse voo a gente tinha uma condição de nuvens stratus a baixa/média altitude, ou seja, sem turbulência prevista.
Estou falando de uma época, em que tínhamos muitos Bell 430 no mercado e a quantidade de pilotos habilitados era pequena, daí, vira e mexe, algum colega nos chamava pra acompanhar algum voo.
Foi o que aconteceu. Estava livre e pude ajudar. Ele de 1P e eu de 2P.
Saímos com plano Y de SBSP e entramos em nuvens logo após a decolagem.
Poucos minutos depois o passageiro nos chama no interfone. Abrimos a conexão pra conversar com ele.
– Olha, o tempo não está bom. Estou desconfortável e eu até prefiro voltar. Como está o tempo lá na frente?
Percebi a agonia, o voo estava IMC, mas super-tranquilo.
Virei pra trás, fiz contato visual, e expliquei que voávamos por instrumentos mas estava tudo certo, que a meteorologia no destino estava ok, blá, blá, blá.
Enquanto isso o colega tinha chegado num ponto onde teríamos que fazer uma curva e iniciar a descida.
Ele desacoplou o PA – Piloto Automático.
Quando finalmente terminei o convencimento do passageiro olhei pro painel. O horizonte artificial estava uns 45° inclinado e a razão de descida era entre 1.500 e 2.000 pés por minuto.
Fui incisivo:
– Nivela!
– Hã?!?
– Tá comigo!
– Flemming, vc está desorientado!!!
O intercomunicador estava ligado e o passageiro ouviu a breve conversa e veio a pergunta: – Mas o que está acontecendo?!?
Entre estabilizar o voo e voltar a conversar com o passageiro, optei pelo voo, estiquei o braço e fechei a conexão.
Depois de estabilizar o voo expliquei pro 1P o que tinha acontecido e devolvi o comando pra ele.
O passageiro não chamou mais, pousamos tranquilos e se despediu sem maiores perguntas.
De volta a Congonhas o colega me explicou.
Desacoplou o PA pra fazer um voo ainda mais suave. Inclinou o helicóptero e focou no climb para garantir uma razão de descida adequada.
Só que teve o que chamamos de “visão de tubo”. Esqueceu os outros instrumentos. Focou sua atenção só no climb e ficou “brigando” com ele. Porque não checava o horizonte artificial, o helicóptero continuou a inclinar e a razão, ora diminuía, ora aumentava.
O interessante é que, enquanto conversava com o passageiro virado pra trás, não senti nada de anormal.
Mas por qual motivo isso aconteceu?
O colega recebeu uma habilitação para voar IFR, sem ter tido o treinamento formal adequado.
Falha do sistema.
Pra entender como isso foi revertido, seguem as explicações, mas tenho que voltar um pouco nessa linha do tempo.
– Ah! Então era vc que colocava areia nisso?
Foi assim que, num papo informal com um amigo da FAB, descobri que era ele mesmo quem não queria que houvesse instrução básica em voo por instrumentos para helicópteros nos próprios helicópteros. Como ele era piloto de avião não entendia o problema dos helicópteros.
– Mas Flemming, Robinson 22 não pode voar IFR!
– Mas dá pra treinar.
Resumindo a conversa. Isso aconteceu na virada do DAC para a ANAC. Ou seja, embora gente muito competente da aviação de helicópteros estivesse tentando implantar os fundamentos do voo IFR para helicópteros nas escolas de formação há décadas, a gente está falando em uma possibilidade de formação muito recente se comparada aos aviões. Pouco mais de dez anos.
Antes disso os pilotos de helicópteros que atuavam na aviação civil voavam IFR, basicamente, de três formas:
– Aprendiam o basicão com um amigo;
– Voltavam pro aeroclube pra aprender a voar IFR num avião e daí convalidavam; ou
– Eram pilotos oriundos das Forças Armadas.
Então, até aquela data, muitos pilotos de helicópteros não faziam ideia do que eram os fundamentos do voo IFR.
– Curva cronometrada? Subida e descida cronometradas com 500 pés por minuto de razão?
Quando eu perguntei a uma autoridade da ANAC onde ele imaginava que os pilotos de helicóptero aprendiam a voar IFR, a resposta veio direta: – Na escola.
Não era na escola. Hoje é.
O conceito da “roda de carroça”, que ensina o piloto a monitorar todos instrumentos da cabine sempre passando pelo centro, onde está o horizonte artificial, é uma peça essencial na segurança dos nossos voos e que hoje está disponível para pilotos de helicóptero.
Não encontrei uma imagem pra ilustrar esse artigo, tentei fazer uma colagem, mas saiu essa coisa grotesca aí.
Esse horizonte artificial deveria estar bem no meio. Em cada raio da roda um instrumento que o piloto deve checar e sempre voltar ao centro antes de verificar um próximo instrumento.
Por acaso vc não teria uma imagem melhor dessa roda de carroça IFR?
Desculpe a minha falha.
Bons voos pra gente!
Flemming
Coletivo prá cima. Cíclico á frente!
Piloto de Helicóptero Ruy Flemming, Coronel Aviador da Reserva da Força Aérea Brasileira.
Formou-se na Academia da Força Aérea Brasileira – AFA
Piloto do 1º Esquadrão de Instrução Aérea da AFA – 1º EIA, das Aeronaves T-25 e T-27 Tucano, formando centenas de Pilotos Militares na Academia
Piloto de Helicóptero Bell UH-1H do 2º/10º Gav – Busca e Salvamento – SAR –
Piloto da Esquadrilha da Fumaça entre os anos de 1992 e 1995 como #3 Ala Esquerda e #7 Isolado
Piloto de Helicótpero Agusta 109
Ex-Diretor da ABRAPHE – Associação de Brasileira de Pilotos de Helicópteros –
Autorizou transcrever seus artigos, causos, dicas e curiosidades aeronáutica de asa fixa ou rotativa. Para acompanhar o Aviador Ruy Flemming nas redes sociais, acesse o link a seguir RUY FLEMMING